terça-feira, 23 de setembro de 2008

Sexo e Cristianismo

 Impressionados pela liberalidade sexual e vocação orgiástica da elite romana,  os apologistas dos primeiros tempos do Cristianismo, inspirados pelos solitários eremitas e anacoretas, inauguraram uma política de completo repúdio ao sexo. Esse radicalismo - enfatizado pelas epistolas Paulinas - acentuou-se pela prática da abstinência carnal, transformando-se num atrativo tão forte para novos seguidores como o martírio dos crentes nas arenas romanas. 

Havia muito simbolismo atrás disso tudo. Não só a busca da perfeição atrás do "coração simples", mas uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia manter-se na frescura com que saiu das mãos do criador, permanecendo puro ou intocado. 

O problema que enfrentavam os pregadores da nova fé era em relação ao casamento: como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo, aceitos na forma do "crescei e multiplicai-vos", sem considerar a atração ou o prazer sexual?

Tentando resolver esse conflito, Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África, terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Donde viria - indagava ele - essa miséria que nos cerca, essa corrupção, essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade - concluiu ele - uma mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual, que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes, desde a queda do Paraíso. 
  
Para Agostinho, foi a partir da danação dos nossos pais primevos que essa desgraça começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a Morte. Desse modo, a sexualidade permanecia como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio da anterior situação angelical, fazendo com que deslizasse para baixo, para a natureza física, e desta para a sepultura. Aceitava que os casais deveriam gestar filhos, mas que o fizessem conscientes de estarem cometendo um ato de rebaixamento. Era algo necessário mas humilhante, que deveria ser praticado sob os acordes de uma intensa melancolia.

Dessa forma, Agostinho introduziu entre os cristãos uma definitiva nódoa de consciência culpada quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos prazerosos. Trouxe para dentro dos lares e para os leitos conjugais uma sombra de coisa maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de incontáveis casais, para quem o sexo passou a ser associado a um "presente do demônio", ou um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no interior de cada um desde a Queda. 

Talvez uma das maneiras de entender-se essa obsessão de Agostinho em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como todo abjurado das suas paixões sensuais pregressas, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa voluptuosidade, pela lasciva, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou... "mas não ainda!"

                         Agostinho: de devasso a carrasco do sexo                        

Agostinho explicava a maldade como resultante desse tumor sensual e dissoluto existente em todos nós, provocador de uma desordem crônica nas nossas relações, que o tempo inteiro nos perturba com suas poluções, com seus sonhos inconvenientes, incestuosos e inconfessáveis. 
 
Foi contra isso que se mobilizou seu rival, Juliano, bispo de Eclanum que, depois de 418, embrenhou-se numa ruidosa polêmica com ele. Juliano mostrou-se indignado com as acusações de Agostinho ao sexo e ao casamento. Não podia conceber - explicou ele - que o ato necessário à nossa reprodução fosse algo demoníaco ou ter que ser praticado sobre o véu da vergonha e do enxovalhamento. Afinal, eram "impulsos do nosso corpos feitos por Deus". Nada poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa. Bem ao contrário, viu-a natural, saudável, como "o instrumento de eleição de qualquer casamento.... merecedor de censura apenas em seus excessos." 
  
Em várias cartas da sua imensa correspondência, Agostinho tentou amenizar as objeções de Juliano, procurando mostrar-se menos radical do que nos seus escritos anteriores. Porém, sabe-se que, para a posteridade, foi essa sua visão trágica da existência - de sermos os infelizes portadores perpétuos do pecado capital - (de origem paulina-agostiniana), que iria marcar, de uma maneira definitiva, o Cristianismo. 

E o sexo ficou, dali para sempre, visto como uma transgressão, como uma obscenidade... quiçá um ardil satânico para atormentar infinitamente a existência humana.

Nenhum comentário: