terça-feira, 30 de setembro de 2008

O semeador do bem

Era noite e Ele estava só.
Lobrigou, à distância, as muralhas de uma grande cidade e para ela se dirigiu. E, quando se aproximou, ouviu o tropel de folguedos, o alarido da alegria e o ruído ensurdecedor de muitos alaúdes.
Ele bateu no portão e os guardas abriram-lho.
E Ele viu uma casa de mármore, com belas colunas de mármore à sua frente. 
Ele entrou na casa e cruzou o vestíbulo de calcedônias e atingiu o salão de festins.
E viu, estendido sobre um leito de púrpura marinha, um homem cujos cabelos estavam coroados de rosas vermelhas e os lábios rubros manchados de vinho.
E Ele aproximou-se do homem, por detrás, tocou-lhe as costas, dizendo-lhe:
- Por que vives assim?
O homem, voltando-se, reconheceu-o e respondeu-lhe:
- Eu era leproso e tu me curaste. Como iria viver?
Ele deixou a casa e voltou à rua. Pouco depois, viu uma mulher cujo rosto e trajes eram coloridos e cujos pés estavam recamados de pérolas. Atrás dela, cauteloso como um caçador, caminhava um jovem usando túnica de duas cores. O rosto da mulher era tão belo quanto o rosto de um ídolo e os olhos do jovem faiscavam de sensualidade.
Ele seguiu o jovem e tocando-lhe na mão indagou:
- Por que olhas para essa mulher de tal maneira?
O jovem, voltando-se, reconheceu-o e retrucou-lhe:
- Eu era cego e tu me restituiste a vista. A quem mais eu poderia olhar?
Ele correu para adiante e, tocando no vestido colorido da mulher, perguntou-lhe:
- Não há outro caminho para trilhares que não seja o do pecado?
A mulher voltou-se e, reconhecendo-o, replicou-lhe:
- Tu perdoastes meus pecados e este é um caminho agradável.
Ele, então, afastou-se da cidade. E, quando a deixava, deparou-se-lhe, à beira da estrada, um homem a chorar. Ele apiedou-se do homem e, tocando nos seus cabelos, perguntou-lhe:
- Por que choras?
O homem ergue os olhos e, reconhecendo-o, respondeu-lhe:
- Eu estava morto e tu me ressuscitaste. Que farei agora senão chorar?
(Conto de Oscar Wilde)

domingo, 28 de setembro de 2008

O dia é hoje

DIÁRIO DE BORDO
Eu tenho (tinha) um amigo de quem, no passado, estive muito perto. As sinuosas e tortuosas estradas da vida tornaram nossos contatos pessoais cada vez menos freqüentes. Mas quando aconteciam, era sempre extremamente gratificantes. 

Nestes últimos três anos, planejei, várias vezes, revê-lo. Mas uma coisa aqui, outra coisa ali, foram transferindo a visita para amanhã.  Um amanhã sempre adiado. Um amanhã que nunca chegou. 

Ontem, afinal, eu fui à sua casa. Apenas para ser finformado de que ele falecera, alguns meses antes. E eu nem soube. 

Agora, fico entregue aos meus pensamentos soturnos, e me dou conta que, ao longo de todos esses anos, eu jamais lhe disse o quanto gostava dele, o quanto a sua amizade era importante para mim, ainda que acredito ter demonstrado isso com minhas atitudes. 

Por que será que temos tanta reserva (ou acanhamento) em expressar, com palavras, o que sentimos, preferindo fazê-lo através de gestos? 

Não basta a certeza de sermos amados. Gostamos, queremos e precisamos ouvir que o somos. E se gostamos, queremos e precisamos, o outro também gosta, quer e precisa. 

Quando adiamos para um amanhã indefinido o que poderíamos fazer hoje, arriscamo-nos a descobrir que esse amanhã não existe mais. E então, ficaremos com o gosto amargo do arrependimento pelo que deixamos de fazer. 

O ontem e o amanhã não nos pertencem. Temos apenas o dia de hoje. 
Logo, é hoje que devemos dizer o que queremos e precisamos dizer. É hoje que devemos expressar com palavras aquilo que nosso coração sente.  
É hoje que devemos dizer: Eu amo você!.  
Carpe diem


sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Holocausto cigano


Por sua natureza nômade, os ciganos sempre foram mal vistos e, eventualmente, vítimas de preconceito e perseguições, em vários recantos do mundo. Mas nenhuma experiência passada pode ser comparada, em horror e desumanidade, àquela que esse povo viveu na Europa, durante os tempos sombrios do Nazismo, como se lê no texto abaixo, de Myriam Novitch, diretora do Museu dos Combatentes dos Guetos, fundado por um grupo de sobreviventes do Gueto de Varsóvia: 

O nazismo no século XX, retomou toda série de preconceitos, discriminações e perseguições dos séculos anteriores, tentando assim uma campanha de extermínio como nunca antes empreendida. Desde 1933, a imprensa nazista começou a acentuar que os ciganos e judeus eram raça estrangeira, inferior, e que teriam contaminado a Europa como um corpo estranho.

O primeiro grito de alarme oficial para o mundo cigano se fez ouvir a 17 de outubro de 1939, quando Heydrich, a mando de Hitler, proibiu-os de abandonar seus acampamentos. Nos três dias seguintes, após recenseamento, foram transferidos para campos de concentração, esperando serem enviados à Polônia.

Mas já em 1936 tinha começado para os ciganos a via sacra dos campos de concentração, ainda que com escopos diversos. Dachau foi um de seus primeiros campos de concentração. Eram internados com a qualificação de elementos associais. Sofriam então medidas disciplinares duríssimas.

Nesse ínterim a propaganda contra os ciganos se tornava sempre mais áspera. Em novembro de 1941 lançou-se o slogan: Depois dos judeus, os ciganos!

A 24 de dezembro de 1941, o governador civil Lohse envia uma ordem reservada a todas as SS, afirmando que os ciganos são duplamente perigosos, tanto pelas doenças de que são portadores como pela sua deficiência, prejudicando assim a causa nazista. Ao termo do comunicado, a decisão: Decidi portanto que sejam tratados como os judeus (Carta de 7 de julho de 1942, no arquivo Yivo).

Em outubro de 1941, chegaram a Lodz cinco mil ciganos, entre os quais mais de 2.600 crianças. Foram todos internados por grupos de famílias. Os testemunhos nos dizem que as janelas das barracas estavam quebradas, enquanto o inverno era extremamente duro. No campo não havia medidas higiênicas nem assistência médica. Duas semanas depois da chegada dos nômades, irrompeu uma epidemia de tifo, e em dois meses morreram mais de 6oo adultos e crianças. Os sobreviventes entre março e abril de 1942, foram deportados para Chelmo, e ali assassinados nas câmaras de gás.

Desde então até 1946 se multiplicam os testemunhos: massacres coletivos, mortes individuais, tortura de todo o tipo, experimentos químicos e médicos dos mais cruéis. E todas essas crueldades ocorriam nos diversos campos de concentração. Eis os nomes de alguns desses campos: Auschwitz, Birkenau, Mauthausen, Rabensbruch, Buchenwald, Chelmo, Lodz, Dachau, Lackenbach, Sachsenhausen.

Ao campo de Auschwitz chegavam ciganos de toda a parte. Homens, mulheres e crianças, sendo que estas últimas vinham da Boêmia, dos Carpatos, da Croácia, do Nordeste da França, da Polônia meridional e da Rutênia. Bárbara Richter, menina cigana, assim depõe: Até os prisioneiros mais afeitos a esses horrores sentiram enorme tristeza quando perceberam que os SS iam tirar um por um os pequenos judeus e ciganos, reunindo-os em um só rebanho. Os meninos choravam e gritavam, tentavam freneticamente voltar para os braços dos pais ou dos protetores que tinham encontrado entre os prisioneiros, mas envolvidos por um círculo de fuzis e metralhadoras, foram levados para fora do campo e enviado para Auschwitz, onde morreriam nas câmaras de gás.

No campo de concentração nem todos eram enviados à câmara de gás, muitos iam para os trabalhos forçados. No campo estas eram as condições: No setor cigano erguiam-se grandes cabanas com uma abertura à frente e outra atrás. Serviam como portas. Nos compartimentos internos achavam lugar a uma única mesa grande cinco ou seis pessoas. As condições higiênicas eram desastrosas quase não havia instalações sanitárias... Parecia um estábulo para cavalos, sem janelas... Os prisioneiros se moviam em meio a seus próprios dejetos até os calcanhares.

Respondendo a uma observação, por insuficiência de calorias, um oficial comentou: Mas no fundo são apenas ciganos!  Quem mais sofria eram as crianças... Como depôs alguém: As crianças eram pele e ossos. A pele, em conseqüência, se enchia de feridas infecciosas. Por causa da falta d'água, as crianças chegaram a beber água servida; nas poucas vezes em que os cobertores eram lavados, vinham de volta para a enfermaria ainda molhados. Elas sofriam de estomatite cancrenosa... parecia lepra...seus corpinhos iam se desfazendo, bocas espantosas se abriam nas faces, e lá dentro se podia observar a lenta putrefação da carne viva.

Só no campo de Aushwitz, os ciganos regularmente matriculados foram 20.933, incluindo 360 crianças nascidas no campo de concentração, e que viveram o bastante para receberem número de matrícula. A estes se devem somar mais de 1.700 ciganos mandados para a câmara de gás, assim que chegaram da Polônia em março de 1943, e que nem tinham recebido ainda o número de matrícula. Durante uma simulação de ataque aéreo noturno, foram todos mandados à câmara de gás, por suspeita de serem portadores de tifo.

Esses testemunhos, que poderiam se multiplicar quase no infinito, culminariam no massacre final, narrado por quem assistiu à matança de quatro mil ciganos, no começo de agosto de 1944: A sirena anunciou um princípio de um rigoroso toque de recolher. Os caminhões chegaram por volta das 20 h. Os ciganos tinham previsto o que estava para acontecer, mas os alemães fizeram de tudo para confundir as idéias: ao saírem dos acampamentos, os ciganos recebiam uma ração de pão e salame, e muitos assim acreditaram que se trataria simplesmente de transferência para outro campo.

Podíamos ouvir, quando os últimos e horríveis instantes, irromperam no acampamento e se lançaram contra mulheres e crianças e anciãos, alemães armados e auxiliados por cães. De repente o ar foi rasgado pelos gritos de um garoto que em theco suplicava: Eu lhe peço, senhor SS, me deixe viver! A única resposta que teve foram os golpes de cassetete. Por fim, foram todos jogados, em montes, no caminhão e levados ao crematório. Houve ainda quem tentasse resistir, invocando a nacionalidade alemã (Kraus e Kulka).

Houve cenas de cortar o coração: mulheres e crianças se ajoelharam diante de Mengele e Borger, gritando; Piedade! Tenha piedade de nós! Em vão. Foram abatidos a coronhadas, pisados, arrastados ao caminhão, levados à força. Foi uma noite horrível, alucinante. Na carroceria foram jogados os que também já tinham morrido sob os golpes da clava . Os caminhões chegaram ao bloco dos órgãos por volta de 22h30min e ao isolamento por volta de 23hs. Os SS e quatro prisioneiros levaram para fora os enfermos, mas também 25 mulheres em perfeita saúde, isoladas com os respectivos filhos (Aldesberger, p.112-13).

Por volta de 23hs chegaram outros caminhões diante do hospital, num só caminhão colocaram cerca de 50 a 60 presos e foi assim que chegaram até a câmara de gás. Ouvi os gritos até altas horas da madrugada, e compreendi que alguns tentavam opor resistência. Os ciganos protestavam, gritando e lutando até a madrugada... Tentavam vender a vida a um alto preço (Dromonski, no processo por Auscwitz).

Depois, Gober e outros percorreram os quartos um por um tirando dali as crianças que tinham se escondido. Os menores foram arrastados até os pés de Boger, que os agarrava pela perna e os jogava contra a parede...Vi esse gesto se repetindo-se umas cinco, seis e sete vezes(Langhein).

A certa altura aproximou-se de mim um oficial SS e mandou que escrevesse uma carta que tinha por assunto tratamento especial executado. Ele mesmo arrancou violentamente a carta da máquina, assim que terminei de datilografá-la. Quando se fez dia no acampamento, não havia de pé um só cigano (Testemunho Stenber-Longhein, 1965).

As estimativas mais próximas falam de ao menos meio milhão de ciganos mortos, mas sabemos que esses dados são inferiores às cifras reais, pois muitos foram mortos antes mesmo de serem matriculados.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Sexo e Cristianismo

 Impressionados pela liberalidade sexual e vocação orgiástica da elite romana,  os apologistas dos primeiros tempos do Cristianismo, inspirados pelos solitários eremitas e anacoretas, inauguraram uma política de completo repúdio ao sexo. Esse radicalismo - enfatizado pelas epistolas Paulinas - acentuou-se pela prática da abstinência carnal, transformando-se num atrativo tão forte para novos seguidores como o martírio dos crentes nas arenas romanas. 

Havia muito simbolismo atrás disso tudo. Não só a busca da perfeição atrás do "coração simples", mas uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia manter-se na frescura com que saiu das mãos do criador, permanecendo puro ou intocado. 

O problema que enfrentavam os pregadores da nova fé era em relação ao casamento: como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo, aceitos na forma do "crescei e multiplicai-vos", sem considerar a atração ou o prazer sexual?

Tentando resolver esse conflito, Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África, terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Donde viria - indagava ele - essa miséria que nos cerca, essa corrupção, essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade - concluiu ele - uma mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual, que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes, desde a queda do Paraíso. 
  
Para Agostinho, foi a partir da danação dos nossos pais primevos que essa desgraça começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a Morte. Desse modo, a sexualidade permanecia como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio da anterior situação angelical, fazendo com que deslizasse para baixo, para a natureza física, e desta para a sepultura. Aceitava que os casais deveriam gestar filhos, mas que o fizessem conscientes de estarem cometendo um ato de rebaixamento. Era algo necessário mas humilhante, que deveria ser praticado sob os acordes de uma intensa melancolia.

Dessa forma, Agostinho introduziu entre os cristãos uma definitiva nódoa de consciência culpada quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos prazerosos. Trouxe para dentro dos lares e para os leitos conjugais uma sombra de coisa maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de incontáveis casais, para quem o sexo passou a ser associado a um "presente do demônio", ou um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no interior de cada um desde a Queda. 

Talvez uma das maneiras de entender-se essa obsessão de Agostinho em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como todo abjurado das suas paixões sensuais pregressas, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa voluptuosidade, pela lasciva, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou... "mas não ainda!"

                         Agostinho: de devasso a carrasco do sexo                        

Agostinho explicava a maldade como resultante desse tumor sensual e dissoluto existente em todos nós, provocador de uma desordem crônica nas nossas relações, que o tempo inteiro nos perturba com suas poluções, com seus sonhos inconvenientes, incestuosos e inconfessáveis. 
 
Foi contra isso que se mobilizou seu rival, Juliano, bispo de Eclanum que, depois de 418, embrenhou-se numa ruidosa polêmica com ele. Juliano mostrou-se indignado com as acusações de Agostinho ao sexo e ao casamento. Não podia conceber - explicou ele - que o ato necessário à nossa reprodução fosse algo demoníaco ou ter que ser praticado sobre o véu da vergonha e do enxovalhamento. Afinal, eram "impulsos do nosso corpos feitos por Deus". Nada poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa. Bem ao contrário, viu-a natural, saudável, como "o instrumento de eleição de qualquer casamento.... merecedor de censura apenas em seus excessos." 
  
Em várias cartas da sua imensa correspondência, Agostinho tentou amenizar as objeções de Juliano, procurando mostrar-se menos radical do que nos seus escritos anteriores. Porém, sabe-se que, para a posteridade, foi essa sua visão trágica da existência - de sermos os infelizes portadores perpétuos do pecado capital - (de origem paulina-agostiniana), que iria marcar, de uma maneira definitiva, o Cristianismo. 

E o sexo ficou, dali para sempre, visto como uma transgressão, como uma obscenidade... quiçá um ardil satânico para atormentar infinitamente a existência humana.

As freiras de Loudun


No  famoso caso da Freiras de Loudon, acontecido em 1633, Urbain Grandier aparece como o grande vilão. Afinal, ele era a autoridade superior daquela paróquia e andava envolvido em escândalos sexuais. 
  
Quando as freiras do Convento de Loudun apresentaram sintomas de possessão, ou histeria, o padre foi acusado de magia negra: o povo acreditava que ele era o responsável pelos fenômenos e o inquérito apurou que Grandier estaria associado a dois demônios, Asmodeus e Zabulon, para produzir os ataques.
  
Sessenta testemunhas fizeram acusações de adultérios, sacrilégios e outros crimes cometidos mesmo em recintos sagrados, dentro da Igreja.
 
O processo de Urbain Grandier foi marcado por contradições. 
Várias religiosas retiraram as denúncias e revelaram terem sido "instruídas" por superiores. 
  
O réu afirmou sua inocência, mesmo submetido a torturas, e manteve esta posição até o momento final, na fogueira. 
  
Nos meses seguintes à morte de Grandier, vários de seus acusadores morreram vitimados por doenças misteriosas e as freiras continuaram a padecer de convulsões.   

PACTO DE GRANDIER   

No processo jurídico-eclesiástico contra Urbain Grandier, acusado de enfeitiçar as freiras de Loudun, consta que uma cópia do pacto, um documento escrito foi encontrado entre os papéis do réu, devassados depois de sua prisão. 
  
O costume de formalizar tais pactos por escrito foi instituído a partir do século XII (anos 1.100); até então, a maioria dos "acertos" com o Diabo era feita oralmente, na base da confiança mútua na palavra. O trato mais comum garantia que riquezas e honras seriam providenciados pelo Demo que, em paga, receberia a alma do feiticeiro depois de sua morte. 
 
O contrato estipulava um prazo para o desfrute das benesses; findo o prazo, o cobrador infalivelmente apareceria para cobrar o preço acertado. 

O "contrato" de Grandier ainda existe. Foi redigido em latim, da esquerda para direita, assinado com sangue, por mais de um demônio, e se encontra na Bibliothèque Nationale, em Paris. Diz o texto: 

Meu Senhor e Mestre, tenho-o como meu Deus; prometo servi-lo enquanto viver e, desde esta hora, renuncio a todos os outros deuses e Jesus Cristo e Maria e todos os Santos do Céu e à Igreja Católica Apostólica Romana e a todo o bem e preces que possam ser feitos por mim. Prometo adorá-lo e prestar-lhe homenagem pelo menos três vezes por dia e fazer o máximo de mal possível e levar ao mal tantas pessoas quanto possível; renuncio de coração ao Cristo, ao batismo e a todos os méritos de Jesus Cristo; no caso de desejar mudar, dar-lhe-ei meu corpo e minha alma e minha vida como garantia, tendo entregue tudo isso para sempre sem qualquer vontade de arrependimento. Assinado: Urbain Grandier, com seu sangue.  


O pacto diabólico (Bibliothèque Nationale, em Paris)
 

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Post Scriptum


Quando nosso navio parte de Honolulu, penduram-nos ao pescoço "leis", que são grinaldas de flores, levemente odoríficas. O cais regurgita de povo e a banda toca uma derretida melodia havaiana. Os passageiros atiram serpentinas aos que ficam e a amurada do navio engalana-se toda com finas fitas de papel de cor alegre. Depois, quando navio começa a se afastar do porto, as serpentinas rompem-se com um leve estalido.

É como a ruptura dos laços humanos.

Homens e mulheres são momentaneamente unidos por uma fita de papel de cor alegre. Depois, a vida os separa e as serpentinas rompem-se com um leve estalido. Por algumas horas, seus fragmentos tremulam ao longo do casco, até que o vento os leva. As flores de nossa grinalda murcham e seu aroma se torna opressivo. Então, jogamo-las ao mar.
  
(W. S. Maugham - Post scriptum de "Histórias dos Mares do Sul")
 

domingo, 21 de setembro de 2008

Oráculo de Delfos

 Estima-se que o oráculo de Delfos tenha começado a funcionar ao fim do segundo milênio antes de Cristo, isto é, entre 1200-1100 a.C. , tornando-se célebre, entre tantas outras coisas, por ter previsto o fim do reino da Lídia e eternizando-se para sempre ao ser citado na peça de Sófocles “Édipo Rei”, onde informa ao personagem central que ele “mataria o pai e casaria com a própria mãe”. Não houve grego famoso naqueles quase mil e quinhentos anos de prática da vidência, que não lhe fizesse uma visita, tentado averiguar que futuro os aguardava. 

Fazem parte da sua galeria ilustre uma boa quantidade de generais e conquistadores, inclusive os comandantes romanos que ocuparam a Grécia no século II a.C. Consta que, depois da sua quase destruição ocorrida no século VI a.C., quando o templo foi reconstruído com dotações pan-helênicas, coube ao imperador Nero submeter o oráculo de Delfos e suas cercanias a um saque que lhe rendeu mais de 500 estátuas levadas depois para Roma. 

O local foi fechado finalmente pelo imperador Teodósio, em 385, quando o Cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano e o Paganismo passou a ser perseguido.

Porém, Delfos já se encontrava em total decadência bem antes de ser definitivamente fechado. Quando o  imperador Juliano, o Apóstata (331-363), mandou fazer uma consulta ao oráculo, dizem que a resposta enviada a ele pelos sacerdotes que ainda ali restavam foi: 
Diga ao rei isso: o templo glorioso caiu em ruínas; Apolo já não tem um teto sobre a sua cabeça; as folhas dos lauréis estão silenciosas, as fontes e arroios proféticos estão mortos.” 

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Réquiem para Chico Xavier



Ele queria morrer 
num dia em que o povo  estivesse feliz .  
Foi atendido.    

Na noite de 30 de junho de 2002, 
quando os brasileiros, eufóricos,
 comemoravam a conquista do 
pentacampeonato mundial de futebol, 
Francisco Cândido Xavier 
exalou, serenamente, seu derradeiro suspiro.    

Embora fosse o nome maior 
do Espiritismo nacional, 
ele estava acima das divisões sectárias 
e mesmo os cristãos mais dogmáticos  
de outras correntes, 
 sentiam-se acanhados em criticá-lo.   

Porque se ser cristão 
é devotar a vida ao seu semelhante, 
em permanente exercício 
de amor, humildade e tolerância, 
pouquíssimos foram tão cristãos 
quanto Chico Xavier. 

Em um tempo como o nosso,
tão  carente de grandes homens,
sua morte deixou a humanidade
um pouco mais órfã.

(Alvaro Rodrigues/2002)

  

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lírios e Rosas

 Ela recitou esta poesia de Álvaro de Campos numa festa pelo seu aniversário.  
Se  houvera escrito um poema que dissesse das coisas que lhe aqueciam  o coração, não haveria de ser muito diferente deste.  


Dá-me lírios, lírios,
e rosas também.

Mas se não tens lírios
nem rosas a dar-me,
tem vontade, ao menos,
de dar-me os lírios
e também as rosas.

Basta-me a vontade
que tens – se a tiveres –
de dar-me os lírios
e as rosas também.

  E terei os lírios
- os melhores lírios
e as melhores rosas  –
sem receber nada,
a não ser a prenda
da tua vontade
de me dares lírios
e as rosas também.

 

Internacionalização da Amazônia

Durante debate em uma universidade, nos Estados Unidos, o senador CRISTÓVAM BUARQUE, foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O estudante fez sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um Humanista e não de um brasileiro.  
 
Esta foi a resposta do senador Buarque:   

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é Nosso.

Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade. "Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. 

Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. "Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto ao desemprego provocado pelas decisões arbitrarias dos especuladores globais. 

Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.  Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. 

Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural Amazônico, seja manipulado e instruído pelo gosto de um proprietário ou de um país.

Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado. 

Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. 

Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris,Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro. 

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maiores do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil. 

Defendo a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir à escola. 

Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo.  Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!. 

  

domingo, 14 de setembro de 2008

Estação


Quando meu olhar cruzou com o teu,
clareando a manhã, em meu coração,
senti vontade de saltar do ônibus
que já se afastava daquela estação.

Mas não saltei. Deixei-me ali ficar,
te olhando pelo vidro da janela,
vendo tua imagem se tornar distante
e, quanto mais distante, mais bela.

O resto da viagem foi assim:
Um lembrar solitário de ti...
Um namoro com a saudade, em mim.

Saudade das mãos, que não senti
dos cabelos, que não afaguei
do corpo, que não conheci
dos lábios, que não beijei.

Ah, estivemos tão perto
mas não nos encontramos.
E agora não mais saberemos
o que somos, pra onde vamos

Fico eu aqui, viajante,
os olhos fechados,
sonhando contigo.
Ficas tu, já distante,
talvez, na estação,
a sonhar comigo.  
(alvaro/ago.2008)


terça-feira, 9 de setembro de 2008

Kyoto


O Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor sem a participação dos Estados Unidos, da Austrália e de outros 60 governos que o rejeitaram, é o mais rigoroso dos cerca de 250 acordos mundiais sobre o meio ambiente. Ele foi o resultado da 3a Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada no Japão, em 1997, após discussões que se estendiam desde 1990.
 
A conferência reuniu representantes de 166 países para discutir providências em relação ao aquecimento global, que já afeta toda a humanidade e o meio ambiente como um todo.O documento estabelece, para os países industrializados, a redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) e outros gases que provocam o efeito estufa: metano (CH4), óxido de nitrogênio (N20) e três gases flúor (HFC, PFC e SF6). O CO2 responde por 76% do total das emissões relacionadas ao aquecimento global nesses países.
 
Os signatários se comprometeriam a reduzir a emissão de poluentes em 5,2%, em relação aos níveis de 1990. A redução seria feita em cotas diferenciadas de até 8%, entre 2008 e 2012, pelos seguintes países: Estados Unidos, Rússia, Japão, Alemanha, Reino Unido, Canadá, Itália, Polônia, França, Austrália, Espanha, Países Baixos, República Checa e Romênia.
 
As reduções variam segundo as emissões dos gases nos países industrializados. Um aspecto importante do protocolo é que apenas os Estados listados acima, são obrigados a reduzir suas emissões. Países em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, grandes emissores de poluentes, podem participar do acordo, mas não são obrigados a nada. O conceito básico acertado para Kyoto é o da “responsabilidade comum, porém diferenciada” – o que significa que todos os países têm responsabilidade no combate ao aquecimento global, porém aqueles que mais contribuíram historicamente para o acúmulo de gases na atmosfera (ou seja, os países industrializados) têm obrigação maior de reduzir suas emissões.
 
Estas reduções, que em hipótese alguma serão simples, devem ser calculadas sobre a média 2008–2012 em comparação com os níveis de 1990. Os países do hemisfério sul têm obrigação apenas de fazer um inventário. O tratado determina a diminuição do uso de energias fósseis, como carvão, petróleo e gás, que representam 80% destas emissões.
 
O protocolo representa, para alguns países, um esforço considerável em relação ao aumento natural de suas emissões. É o caso de Canadá e do Japão, onde as emissões aumentaram 20% e 8%, respectivamente, desde 1990. A redução global das emissões será apenas de cerca de 2%, em 2012, em relação a 1990, quando a proposta inicial visava reduzir 5,2%.No entanto, representa um esforço de redução da ordem de 15% para os 36 países industrializados em função do aumento previsível de suas emissões.
 
O protocolo já foi ratificado por 141 países, 30 dos quais são industrializados. A ratificação da Rússia permitiu a entrada em vigor deste tratado. Os países signatários terão de colocar em ação planos de substituição de energia para deter o cinturão de gases tóxicos na atmosfera.
 

Vermelho: Política e Literatura


Vermelho é o nome de uma cor carregada de forte simbologia.
Pode representar sangue, e este, não raro, é apresentado como o fluido da vida e da saúde. Por isso, a cor da "Cruz Vermelha" é vermelha, e a do "Crescente Vermelho", também o é.

Politicamente, o vermelho já foi a cor da liberdade (para alguns continua sendo), que os liberais proclamavam em sua luta revolucionária contra o despotismo aristocrático.

Derrubados os pilares da Aristocracia, não demorou para que o vermelho fosse proscrito, tornado-se uma cor maldita. Isso porque bandeiras vermelhas continuaram a ser desfraldadas por quem entendia que não bastava substituir uma elite por outra, cabendo aprofundar o processo de mudança, para que o poder fosse exercido, realmente, pela maioria da Sociedade.

E assim, o que antes era saudado como legítimo anseio de liberdade, tornou-se sinônimo de subversão, de baderna, de atentado aos mais lídimos valores de nossa civilização cristã ocidental.

Na Sociedade Aristocrática, o valor de um homem era medido pela cor de seu sangue, vale dizer, por seu berço. Para distinguir-se da ralé (também chamada de "canalha"), em cujas veias circulava sangue vermelho, convencionou-se que o sangue da nobresa era azul.

Na Sociedade Liberal, tornada Capitalista, o homem vale pelo que tem, não pelo que é. Talvez por isso, os apóstolos do "Calendário da Paz" sustentam que ela pulsa fora do "tempo natural", posto que o próprio tempo é tratado como sinônimo de dinheiro.

Definitavemente, em termos políticos, o Vermelho tornou-se uma cor fora de moda.

Porém Vermelho pode, tão somente, indicar o nome de uma pessoa; melhor dizendo, seu apelido. Como o personagem descrito pelo escritor inglês, William Somerset Maugham, em sua obra "Histórias dos Mares do Sul".

Muitos leitores de Maugham não relutam em considerar este o seu melhor livro de contos. E dentre os contos enfeixados no livro, "Vermelho" é, inegavelmente, um dos melhores, senão o melhor.

Da primeira à última linha, "Vermelho" é puro Maugham, com seu realismo amargo sobre o amor.

Poucas vezes ele descreveu um relacionamento amoroso de modo tão idílico e apaixonante como o fez ao descrever o romance entre entre "Vermelho" e uma jovem nativa da Polinésia. A leitura embala-nos no Sonho e quase acreditamos que é possível viver o Paraíso neste mundo.

Mas logo somos despertos pelo autor e degregados à leste do Eden.
Maugham faz questão de não nos deixar esquecer (nessa e em outras de suas obras) aquilo que os amantes preferem ignorar: que o amor morre, seja por descuido, por maltrato, por alguma fatalidade, ou pela inexorável e corrosiva ação do tempo.

Ler Maugham é sempre um prazer, mas é preciso renunciar a qualquer ilusão de eternidade.

(Alvaro Rodrigues - 2oo7)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

D. Helder seria Cardeal?

O saudoso arcebispo de Recife e Olinda, D. Helder Câmara (o principal responsável pela criação da CNBB), era amigo pessoal, há muito anos, de Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, que veio a ser tornar o Papa Paulo VI. Quando ia ao Vaticano, não raro D. Helder se hospedava na casa de Montini. E quando Motini tornou-se papa, era voz corrente no episcopado brasileiro que D. Helder seria elevado ao cardinalato.

Aconteceu, então, que poucos meses após a eleição do sucessor de João XXIII, D. Helder foi chamado ao Vaticano, oficialmente para ajudar o Papa a definir a política da Igreja para a América Latina, no novo pontificado. Claro está que, no Brasil, ninguém tinha dúvidas de que D. Helder voltaria Cardeal.

Se era essa a intenção de Paulo VI, ninguém jamais soube.
Sabe-se apenas que, durante uma reunião de D. Helder com o Papa e seus assessores diretos, o "bispo vermelho" (como o chamavam os militares da ditadura brasileira) fez uma proposta "escandalosa".

Ele, simplesmente, propôs ao Papa que a Igreja se desfizesse de sua imensa riqueza material, doando-a a instituições empenhadas em minorar a miséria de milhões de seres humanos em todo o mundo, e se tornasse uma igreja "realmente cristã", vivenciando o "amor aos humildes", "como Jesus o fizera". Ou seja, a cartilha da "Igreja Progressista".

Fez-se um silêncio constrangedor no local da reunião.
Até que Paulo VI, respondendo, teria dito:
- "Ah, se dependesse só de mim, bem que eu o faria!"

D. Helder voltou Arcebispo para o Brasil.
E durante todo o pontificado de Paulo VI, nunca mais foi convocado ao Vaticano, salvo para participar de eventos protocolares.

(Alvaro Rodrigues/2005)

sábado, 6 de setembro de 2008

Voa Liberdade

(Clique no título para ver o vídeo)

- Composição: Mário Maranhão - Eunice Barbosa - Mário Marcos
- Gravação: Jessé

Voa, voa minha liberdade

Entra, se eu servir como morada
Deixa eu voar na sua altura
Agarrado na cintura
Da eterna namorada

Voa, feito um sonho desvairado
Desses que a gente sonha acordado
Voa, coração esvoaçante
Feito um pássaro gigante
Contra os ventos do pecado

Voa nas manhãs ensolaradas
Entra, faz verdade esta ilusão

Voa no estalo do meu grito
Quero ser teu infinito
Neste azul sem dimensão
Voa...


 

Mendiga

DIÁRIO DE BORDO, 08/08/2008
Quando a vi ali sentada naquele chão de pedra, o corpo senil encostado à parede que um dia fora branca, fiz o que raramente faço: tirei do bolso umas moedas e coloquei-as na mão que ela me estendia.

E já me preparava para seguir meu caminho, quando fui tomado por um impulso irresistível e, antes que me desse conta do que fazia, ví-me sentado no chão sujo, ao seu lado.

Passei os olhos pela sua pele escura e encarquilhada, pelo rosto envelhecido, pelos cabelos sem brilho, e pelas mãos esquálidas... mas quando tentei chegar mais perto, ela se encolheu, assustada.

Tudo bem, senhora, compreendo sua surpresa. Eu também me surpreendo com coisas que faço ou sou capaz de fazer.

Não nos falamos, não nos dissemos nada. Deixei-me ficar ali, em silêncio, e acabei cerrando os olhos, não sem antes ver as pessoas que passavam e olhavam espantadas, não por ela - desprezado icone da miséria - mas por não entenderem o que um homem como eu estava fazendo ali.

Ora, pensem o que quiserem, pouco me importa. Não tenho que lhes dar explicações!

Com os olhos fechados, lancei-me nas ondas sinuosas do tempo. Revisitei os lugares de minha infância assustada, aquela sorveteria antiga onde eu comprava figurinhas para colar em albuns, e a escola onde conheci minha inesquecível paixão juvenil...voei nas asas da liberdade pelas manhãs ensolaradas de minha juventude, abraçado à namorada ideal, de longas madeixas e lábios de mel ... escalei serras ingrimes ao encontro do amor e desci pelos vales da desilusão e da saudade ... salivei o sabor de cânticos sagrados e profanos, que entoei como gritos primais, ecoados nas vastas dimensões dos meus sonhos ... até despencar no abismo infindável de minhas buscas, anseios e temores.

Não sei por quanto tempo estive fora de mim (ou mais dentro de mim). Sei apenas que, quando abri os olhos, estava sozinho.
Ela se fora, sem me dizer sequer seu nome.

(Alvaro Rodrigues/2008)

O Tempo