quinta-feira, 1 de maio de 2008

A hora final













O escritor inglês, filósofo e matemático, Bertrand Russel, do alto de seus quase noventa anos, escreveu estas palavras, para mim inesquecíveis:
"Penso que quando eu morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida, mas desdenharei os calafrios de terror ante a idéia da aniquilação total. A felicidade não é absolutamente menor e menos verdadeira apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim, e tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor pelo fato de não poderem ser eternos."

Agnóstico convicto, Russel morreu como viveu e sempre foi fiél às suas convicções, inclusive quando a morte se apresentou diante dele. Aliás, esse era um dos motivos que me faziam admirá-lo e, embora não partilhasse de seu agnosticismo, isso não me impedia de ter sempre seus livros à cabeceira de minha cama. Pode-se mesmo dizer que, naquele tempo, "eu não dormia sem ele". O trecho que acima transcrevi faz parte de um conjunto de ensaios, publicado sob o título de um deles: "Por que não sou cristão". E desse trecho, eu destaco a afirmação de Russel, à qual ele também foi fiél, de que desdenhava os "calafrios de terror" ante a idéia da morte.

Quando somos jóvens, ainda que saibamos que podemos morrer no dia seguinte, a morte é vista e pensada como algo que, embora inevitável, projeta-se em um futuro incerto e, principalmente, distante. Mas quando atingimos uma idade em que, no mínimo, sabemos que já vivemos mais do que ainda haveremos de viver, a imagem da morte se torna mais próxima e mais concreta.

Ao contrário de Russel, penso que, quando eu morrer, o que haverá de se putrefazer será apenas o meu corpo físico. Aquilo que realmente sou continuará vivo, inclusive com o mesmo modo de pensar e de sentir. O que chamamos de morte é tão somente o fim de um dos muitos ciclos de algo incomensurável (talvez eterno): a Vida. Aqueles que, como eu, disso estão convictos, não pensam na morte como algo tenebroso.

Ocorre, porém, que entramos na morte através de um processo: o morrer. E isso é motivo de temor para muitos. Afinal, nem todos são, como Russel, absolutamente fiéis, na vida e na morte, às suas convicções. Há quem passa a vida com medo da morte, evitando pensar e falar sobre ela, e que, na hora final, se porta com a mais absoluta serenidade. Em contrapartida, há os que passaram a vida desdenhando a morte ou mesmo a desejando, mas que, ao vislumbrá-la, rendem-se ao mais completo desespero.

E quanto a mim? Como haverei de me comportar quando chegar o meu momento, sobretudo se tiver prévio conhecimento dele? A resposta é: não sei. E se não posso antecipar qual há de ser minha reação, resta-me tentar definir como é que eu gostaria que ela fosse.

Para tanto, valo-me de outra figura do passado, que também deixou coisas escritas. Não era inglês, era romano; não era filósofo, era imperador. Refiro-me a Adriano. Mesmo não sendo um pensador como Marco Aurélio, o imperador Adriano gostava de registrar os fatos de sua vida e o que pensava deles. Escreveu uma espécie de Diário, do qual, infelizmente, só nos restaram alguns fragmentos, ainda assim o suficiente para que possamos ter uma idéia razoável de suas convicções. Desses fragmentos, a escritora francesa, Marguerite Yourcenar, valeu-se para escrever "Memórias de Adriano", originalmente editado em 1951. Escritora talentosa, Marguerite (que, em minha modesta avaliação, compõe textos com o esmero e a meticulosidade com que um compositor clássico produz peças eruditas) preencheu, com sua imaginação, o que se perdeu das memórias imperiais, produzindo uma obra que simula ser uma autobiografia de Adriano.

O livro se encerra com as reflexões do imperador sobre a morte, que ele então sabe estar próxima:
"Animula, vagula blandula
Hospes comesque corporis
Quaenunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula
Nec, ut sole, dabis iocos"

"Pequena alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo
Vais descer aos lugares pálidos, duros, nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora"

E conclui dizendo: "Esforcemo-nos para entrar na morte de cabeça erguida".

Penso que, como Adriano, é exatamente isso o que almejo para mim: entrar na morte de cabeça erguida.

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