domingo, 25 de maio de 2008

Cântico Negro



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
Há nos meus olhos ironias e cansaços,
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que eu faça não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe, a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide!
Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras e tratados de filósofos e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
(José Régio)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Coisas da Vida















Ele a conheceu e a namorou nos seus tempos de universitário, em plena ditadura militar brasileira.Ela era militante da esquerda estudantil, marxista-leninista de carteirinha, vermelha até o diabo dizer basta, do tipo que só ia pra cama mediante atestado ideológico.
Ficava puta da vida quando ele a puxava para si, dizendo: "Vem cá, meu pedaço de materialismo dialético!". Protestava, mas terminava se entregando.

Não estavam apaixonados; apenas se gostavam, se entendiam e se curtiam.Passavam a maior parte do tempo juntos discutindo política: a revolução cubana, o imperialismo americano, a Guerra do Vietnã, a Primavera de Praga, o livrinho vermelho de Mao.

Sexo apenas de vez em quando, e isso quando conseguiam descolar um espaço adequado, como o apartamento de um amigo.
No futuro, ele viria a lamentar não ter investido um pouco mais em Eros, porque ela, quando despida de sua jaqueta cheia de bottons revolucionários, revelava-se uma fêmea ardente e integral, para quem não havia ... isso-eu-não-quero, isso-eu-não-gosto, isso-eu-não-faço.

Um dia, o namoro acabou - ele já nem lembra como ou porque.
Soube, depois, que ela conheceu um pesquisador suiço, que viera estudar a flora amazônica, e que se encantou com seus olhos claros em tez morena, combinação incomum que a dotava de uma certa beleza exótica.Acabaram se casando e foram viver na Europa.

E assim, enquanto Che Guevara morria na selva boliviana, sepultando as esperanças de uma revolução continental, ela se acomodava a uma existência pequeno-burguesa no país que é um dos ícones do capitalismo financeiro internacional.
Coisas da vida.

domingo, 4 de maio de 2008

Orfandade

Hoje eu voltei, de novo, ao local onde, pela última vez, olhei para os seus olhos fechados, que não mais me podiam ver.
Hoje eu fui lá, lembrando aqueles terríveis momentos em que sua cor, devagar, foi tomando o tom mais triste de nosso irreversível adeus.
Hoje eu estive lá, e me sentei diante daquele mármore, vergado sob o peso da imensa orfandade que carrego em meu peito, desde a nossa despedida.
Hoje eu voltei lá, para lhe repetir o que lhe disse quando a levaram de mim:
Mãe querida, até um dia!

Verdade


"Não creiais em coisa alguma pelo fato de vos mostrarem o testemunho escrito de algum sábio antigo. Não creiais em coisa alguma com base na autoridade de mestres e sacerdotes. Aquilo, porém, que se enquadrar na vossa razão e, depois de minucioso estudo, for confirmado pela vossa experiência, conduzindo ao vosso próprio bem e ao de todas as outras coisas vivas : A isso aceitai como Verdade. " ( Sidarta Gautama, 500 A.C.)


Supostamente, todo ser humano busca conhecer a verdade e agir em consonância com ela.Mas ainda que possamos conceber a existência de uma Verdade Absoluta, a que conhecemos é relativa, o que a torna, em última instância, pessoal.
Há a minha verdade e há a sua verdade, que não são necessariamente iguais, mesmo que ambas sejam construídas com alguns ingredientes de aceitação geral. A razão, o estudo, e a experiência, hão de ser as ferramentas necessárias para o alcance da (minha) verdade.
Necessárias porém não suficientes.
Visto que tenderei a pautar minha vida à luz dessa verdade, importa certificar-me de que ela conduz ao meu próprio bem e ao daqueles que se encontram comigo na estrada desta vida.Se assim não for, não devo aceitá-la como (minha) verdade, mesmo que seja, tecnicamente, verdade.
Gautama era um sábio!

Para Iso




Esta jóia
é pra você,
querida amiga,
portadora
do archote.

Tome-a,
antes que
alguma
aventureira
o faça.

Valdemir

Simples, conciliador, com um permanente brilho amistoso no olhar.
Ele é o paraense Valdemir Costa, desenhista, terapeuta holístico, ciclista, místico e, acima de tudo, poeta.
Autor de dois livros, ambos rimados.
O primeiro foi Elo de Rimas, onde se encontram suas poesias romântico-sensuais.
O mais recente é Poesias do Oráculo Maia, no qual ele poetiza cada Selo do Sincronário Oracular daquele que muitos chamam de "Calendário da Paz", a cujo estudo se dedica.
Como todo ser humano, Valdemir tem lá seus defeitos, mas nenhum deles é capaz de fazer sombra à maior de sua virtudes: a de ser o tipo de amigo que muitos desejam e poucos (como eu) tem o privilégio de possuir.

[Texto importado do sítio "Kaderno"]

sábado, 3 de maio de 2008

O Filho do Pai


Os Evangelhos relatam que, na tentativa desesperada de salvar Jesus, em quem não via nenhuma culpa, Pilatos valeu-se de um costume judaico, vigente durante a Pessach (páscoa), de libertar um prisioneiro condenado à morte, oferecendo ao povo a escolha entre Jesus e Barrabás.

Em João, Barrabás é identificado como um "salteador"; em Marcos e Lucas, ele foi condenado por ter matado alguém durante uma "sedição", e em Mateus, diz-se apenas que ele era "um preso bem conhecido".

O problema é que em nenhuma literatura hebraica, inclusive no Talmud, é possível encontrar qualquer menção à prática de libertar um prisioneiro durante a Pessach. Não se conhece nenhum caso de alguém que tenha sido beneficiado por essa suposta tradição. Tudo leva a crer, portanto, que ela não existia. Também não há qualquer fonte que nos diga que os romanos libertassem prisioneiros condenados, em respeito à tradição religiosa dos judeus ou de qualquer outro povo integrante do Império. E note-se que possuímos abundante literatura sobre o Direito Romano e seu "código processual". Esse Direito era rígido: uma vez decretada a condenação do prisioneiro, somente o Imperador detinha o poder de anulá-la ou comutar a sentença. No caso de Jesus, nem lhe cabia "apelar para César" (como Paulo de Tarso o fez), porque ele não era cidadão romano.

Resumindo, nem na prática judicial romana, nem na hebraica, há qualquer referência à libertação de prisioneiros durante a Pessach ou qualquer outra data religiosa. Considere-se, também, que enquanto Jesus (variante mais "moderna" do antigo nome Josué) era um nome comum em sua época, não se tem referência a nenhum outro Barrabás (possivelment "bar" + "abba" = filho do pai) em toda a longa história de Israel.Por conseguinte, o Barrabás dos Evangelhos é, muito provavelmente, um personagem fictício, cuja função nos relatos da "Paixão" é acentuar a responsabilidade (culpa) do povo judeu na morte de Jesus.

Mas admitamos, por um momento, que essa prática existisse e que Barrabás foi beneficiado por ela.Em todos os relatos da execução de Jesus, menciona-se que ele foi crucificado entre dois outros condenados, descritos sumariamente como "ladrões". A incoerência começa com o fato de que os romanos não costumavam matar meros ladrões. Pelos menos, não rapidamente. A prática usual era torná-los escravos das minas ou galés de navios (onde a vida do prisioneiro tendia a ser curta). Além disso, se os dois "ladrões" eram também condenados à morte, como Barrabás, porque Pilatos não os incluiu, quando ofereceu ao povo a possibilidade de libertar um condenado? Se a prática existia, todos os sentenciados à morte haveriam de poder ser beneficiados por ela.

Por que apenas Barrabás?

[Texto extraído do sítio "O Filho do Homem"]

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Warrior















Guerreiros são pessoas
são fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos
no fundo do peito.
Precisam de um descanso,
precisam de um remanso,
precisam de um sonho
que os tornem refeitos.

(Gonzaguinha)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

A hora final













O escritor inglês, filósofo e matemático, Bertrand Russel, do alto de seus quase noventa anos, escreveu estas palavras, para mim inesquecíveis:
"Penso que quando eu morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida, mas desdenharei os calafrios de terror ante a idéia da aniquilação total. A felicidade não é absolutamente menor e menos verdadeira apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim, e tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor pelo fato de não poderem ser eternos."

Agnóstico convicto, Russel morreu como viveu e sempre foi fiél às suas convicções, inclusive quando a morte se apresentou diante dele. Aliás, esse era um dos motivos que me faziam admirá-lo e, embora não partilhasse de seu agnosticismo, isso não me impedia de ter sempre seus livros à cabeceira de minha cama. Pode-se mesmo dizer que, naquele tempo, "eu não dormia sem ele". O trecho que acima transcrevi faz parte de um conjunto de ensaios, publicado sob o título de um deles: "Por que não sou cristão". E desse trecho, eu destaco a afirmação de Russel, à qual ele também foi fiél, de que desdenhava os "calafrios de terror" ante a idéia da morte.

Quando somos jóvens, ainda que saibamos que podemos morrer no dia seguinte, a morte é vista e pensada como algo que, embora inevitável, projeta-se em um futuro incerto e, principalmente, distante. Mas quando atingimos uma idade em que, no mínimo, sabemos que já vivemos mais do que ainda haveremos de viver, a imagem da morte se torna mais próxima e mais concreta.

Ao contrário de Russel, penso que, quando eu morrer, o que haverá de se putrefazer será apenas o meu corpo físico. Aquilo que realmente sou continuará vivo, inclusive com o mesmo modo de pensar e de sentir. O que chamamos de morte é tão somente o fim de um dos muitos ciclos de algo incomensurável (talvez eterno): a Vida. Aqueles que, como eu, disso estão convictos, não pensam na morte como algo tenebroso.

Ocorre, porém, que entramos na morte através de um processo: o morrer. E isso é motivo de temor para muitos. Afinal, nem todos são, como Russel, absolutamente fiéis, na vida e na morte, às suas convicções. Há quem passa a vida com medo da morte, evitando pensar e falar sobre ela, e que, na hora final, se porta com a mais absoluta serenidade. Em contrapartida, há os que passaram a vida desdenhando a morte ou mesmo a desejando, mas que, ao vislumbrá-la, rendem-se ao mais completo desespero.

E quanto a mim? Como haverei de me comportar quando chegar o meu momento, sobretudo se tiver prévio conhecimento dele? A resposta é: não sei. E se não posso antecipar qual há de ser minha reação, resta-me tentar definir como é que eu gostaria que ela fosse.

Para tanto, valo-me de outra figura do passado, que também deixou coisas escritas. Não era inglês, era romano; não era filósofo, era imperador. Refiro-me a Adriano. Mesmo não sendo um pensador como Marco Aurélio, o imperador Adriano gostava de registrar os fatos de sua vida e o que pensava deles. Escreveu uma espécie de Diário, do qual, infelizmente, só nos restaram alguns fragmentos, ainda assim o suficiente para que possamos ter uma idéia razoável de suas convicções. Desses fragmentos, a escritora francesa, Marguerite Yourcenar, valeu-se para escrever "Memórias de Adriano", originalmente editado em 1951. Escritora talentosa, Marguerite (que, em minha modesta avaliação, compõe textos com o esmero e a meticulosidade com que um compositor clássico produz peças eruditas) preencheu, com sua imaginação, o que se perdeu das memórias imperiais, produzindo uma obra que simula ser uma autobiografia de Adriano.

O livro se encerra com as reflexões do imperador sobre a morte, que ele então sabe estar próxima:
"Animula, vagula blandula
Hospes comesque corporis
Quaenunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula
Nec, ut sole, dabis iocos"

"Pequena alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo
Vais descer aos lugares pálidos, duros, nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora"

E conclui dizendo: "Esforcemo-nos para entrar na morte de cabeça erguida".

Penso que, como Adriano, é exatamente isso o que almejo para mim: entrar na morte de cabeça erguida.