quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Adeus



Se você me encontrar pela rua
não precisa mudar de calçada
Faz de conta que somos estranhos
e que nunca entre nós houve nada

Não precisa baixar a cabeça
pra não ver os meus olhos nos seus.
Passarei por você sem rancor, sem lembrar
que entre nós houve adeus.
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Adeus 2008, um ano de muita luta,  algumas promessas e vários desencontros. 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

CLARICE





Jamais consegui pensar em Clarice Lispector como (apenas) uma mulher. Ela sempre me pareceu alguém que transcende o gênero e se situa naquele andar-de-cima onde homens e mulheres deixam de sê-lo e se (con)fundem no estado pleno, ainda que impreciso, do Ser.

Foi no tempo em que eu buscava, estudando na Universidade, me tornar um historiador, que descobri Clarice em “A paixão segundo GH”, pouco depois dessa obra chegar às livrarias.

Assim começou nosso namoro mórbido (nem poderia deixar de ser mórbido, em se tratando dela), que eu condimentava com a poesia de Baudelaire.

Mas foi em “Perto do coração selvagem” que a tornei minha amante, mesmo sabendo que ela me seria uma amante infiel, posto que  jamais seria para ela o que ela se tornara para mim. E quando me perguntava a causa dessa atração fatal, me vinha sempre a mente a frase dela que se me tornara querida: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.

Por um bom tempo, acreditei (ou desejei) que aquilo que desejava, mesmo sem conseguir defini-lo, eu encontraria em Clarice. E se, não raro, deixava de entender o que ela escrevia, não me sentia abatido ou frustrado, antes pelo contrário, até porque “...entender é sempre limitado, mas não entender pode não ter fronteiras.”. Se ela confessava ser “...muito mais completa, quando não entendo”, eu fazia minhas suas palavras e tentava me satisfazer com isso.

Àquele tempo, eu também estava em processo de “coser pra dentro”, mas ardia de desejo voluptuoso de correr  descalço sobre o asfalto escaldante, despindo-me sempre que relampejava, para que nenhum trecho de meu corpo deixasse de ser molhado pelo temporal que haveria de vir.

Se Joana olhava as galinhas e pensava nas minhocas (há quem prefira observar formigas);eu me entregava a observar pessoas, buscando nelas aqueles pontos-de-contato comigo, aquilo que (segundo me fora ensinado) nos tornava iguais, irmanados na mesma condição humana. Mas as observava de longe, porque me parecia poder perceber melhor do que chegando perto (Caetano diria, bem depois, que “de perto ninguém é normal”).

Chegar perto de Clarice, tentar entender aquele quarto escuro (terror das crianças) onde ela existia ... nem pensar. Ninguém o conseguiria. Aliás, nem ela mesma: “Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim”.

Uma imensa geografia brasileira me separava dela, mas ainda que vivêssemos na mesma cidade e me fosse dado conhecê-la pessoalmente, acho que haveria de preferir me manter distante. Podia amá-la,  mas sabia que não conseguiria conviver com aquela mulher “irritável”, aquela senhora das palavras (arma terrível se usada para ferir).

Quando eu transava com Clarice, no leito dos livros que ela escrevia, por vezes a flagrava numa mentira. Todavia isso não me incomodava. Todo escritor (poeta ou romancista) precisa mentir, porque a mentira (ou uma “verdade inventada”) é inerente à criação. Por isso, quando ela dizia que gostava “de um modo carinhoso” do “malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça”, eu não a levava a sério. O alçapão de um escritor é se deixar seduzir pelas próprias palavras, sobretudo quando sugerem imagens impressionantes.

Então chegou o dia em que senti necessidade de fazer de toda a angústia existencial presente no mundo interior de Clarice (e no meu), plataforma para um “estar no mundo”  
Diante de “... enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever”, eu começava a preferir o dizer indignado de José Régio: “Se o que busco saber, ninguém me responde, por que me repetis: Vem por aqui?”

Estar com Clarice fazia de mim alguém ainda mais solitário do que sempre fui e, de repente, a frase de um cartaz numa passeata estudantil  -  “Só sente solidão quem não participa das lutas de seu tempo”  -  me sacudia para a realidade de minha época. Época de angústias mais concretas, expressa em gritos dos torturados nos porões da Ditadura Militar. Sem deixar de sentir, eis que se impunha fazer, por pouco que fosse, porém mais do que apenas vociferar contra a injustiça e a tirania, em mesas de bar regadas a “Cubra Libre”.

Aposentei Clarice em minha biblioteca. Não li seu último livro, “A hora da estrela”, agora tratado como seu romance mais famoso.  Como a amante que um dia acampou em meu coração e de lá nunca se foi inteiramente, eu a conservo como uma relíquia de meu passado, uma dentre outras saudades que eu, às vezes, gosto de ter.

Porém, mesmo tendo oficiado nossa “cerimônia de adeus” (parodiando Simone de Beauvoir),  nunca deixei de cultivar uma certa “claricefilia”. De alguma forma, ela se manteve sempre perto do meu “coração selvagem”. 
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Alvaro Rodrigues (nov/2008)

Publicado, originalmente, em "Cultura & Humanismo"
http://culturahumana.ning.com/group/clarice

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Belém 50


Numa tarde chuvosa na Belém dos anos 50, o fotógrafo registra a passagem, pelo Largo de São Brás,  de um ônibus construido no formato do dirigível alemão, Zeppelin.
 
Eram dois esses ônibus-zeppelins, percorrendo uma linha circular, um no sentido inverso ao outro.

Nunca houve ônibus como esses em nenhuma outra cidade do país.



O ônibus-zeppelin e uma carrocinha de leite,  usada pelos donos de vacarias, geralmente portugueses, para distribuir o produto de casa em casa, em garrafas (litros) de vidro deixadas nas janelas das residências, antes do alvorecer e no início da tarde.