Quem se debruça atentamente sobre o texto do Gênesis para ler o mito hebraico da criação do Homem, há de perceber a presença de duas narrativas distintas. No capítulo 1 do livro, IHWH cria, no "último dia da Criação", o primeiro casal de humanos: homem e mulher são criados juntos, num mesmo momento, da mesma maneira. No capítulo 2, o homem é criado primeiro, enquanto a mulher só nasce posteriormente, a partir de uma costela do macho.
Alguns estudiosos judeus tentaram explicar a contradição sugerindo que o Gênesis mostra ter havido duas criações: na primeira, IHWH criou os seres humanos em geral; na segunda, criou um homem especial, seu predileto, do qual derivou a "raça adâmica", ou seja, os hebreus. Mas os historiadores que pesquisam a chamada História Bíblica, preferem identificar nessa incongruência a presença de duas fontes diferentes, que se teriam amalgamado no Livro do Gênesis.
Essa é uma explicação razoável e muito se poderá dizer em seu favor. Mas há outra possibilidade, não menos aceitável, que dispensa o apelo a uma "segunda fonte".
MUTILAÇÃO DE UM MITO
Da mesma forma como um fato real pode vir a se converter em um mito, por força de metamorfoses que a transmissão oral produz na história original, o próprio Mito pode também ser vítima de mutilação, mediante acréscimo, modificação ou supressão.
Encontramos um bom exemplo desse processo na lenda do Rei Artur.Muito provavelmente, a saga desse herói deriva de um personagem real, que teria vivido na Bretanha, nos obscuros anos de transição entre o domínio romano e o estabelecimento dos reinos anglo-saxões.
Todavia seus feitos foram fantasiados de tal modo que o "Artur histórico" se perdeu e, hoje, é uma tarefa talvez impossível (ainda que fascinante) tentar resgatá-lo.
INCOERÊNCIA
Diz o Gênesis em seu capítulo 1, que o Deus Eterno (IHWH), após ter criado o céu, a terra, as estrelas, etc, cria os seres viventes: os peixes, as aves e os animais, segundo a sua espécie. A todos eles dá um comando: "Frutificai e multiplicai", o que implica em acasalamento e reprodução. Infere-se, portanto, que esses seres foram criados aos pares: macho e fêmea, de cada espécie.
Com o Homem não é diferente. No "dia sexto", ele é criado, à imagem de Deus segundo a sua semelhança, cabendo-lhe frutificar, multiplicar-se, encher a terra e subjugá-la. Neste ponto, o Gênesis é explícito: "... à imagem de Deus o criou; macho e fêmea criou-os".
O primeiro capítulo do livro se encerra com IHWH vendo que era bom tudo quanto havia feito. E até então, a narrativa apresenta-se coerente.
A incoerência se instala no capítulo 2. Além de esclarecer que "formou o Eterno Deus ao homem, pó da terra (2), e soprou em suas narinas o alento da vida", Gênesis diz que, inicialmente, apenas o macho humano é criado e colocado no Jardim do Éden, contrariando a lógica contida no capítulo anterior. A fêmea só aparece na narrativa quando IHWH se dá conta de que não é bom que esteja o homem só (3). Então, fazendo-o cair em um sono pesado, toma-lhe uma de suas costelas (Gn 2,21) e dela faz a mulher.
Mas essa incoerência pode ser apenas aparente, se admitirmos que entre o primeiro e o segundo relato houve supressão de uma parte da narrativa, que a tornava coerente.
Que parte era essa? O que ela continha?
PERGUNTAS INCÔMODAS
Quando IHWH criou Eva, da costela de Adão, e a levou ao homem, este a recebeu dizendo:"Esta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gn 2,23).
Esta vez ...? Por que "ESTA vez"? Teria havido uma OUTRA vez? Teria havido uma vez em que a mulher não era "osso dos meus ossos e carne da mnha carne"? Em outras palavras, teria havido uma mulher que não fora feita a partir do homem?
Ora, se IHWH decidiu criar o homem só (apenas o macho da espécie), por que resolveu, depois, dar-lhe uma companheira, contrariando seu próprio designo original?
Por que IHWH refletiu que "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2,18), após tê-lo assim criado, se ao cabo dos 6 dias da Criação, ele (IHWH) havia visto tudo quanto fizera "e eis que era muito bom" (Gn 1,31) ?
Como seria possivel ao homem, sem a fêmea de sua espécie, cumprir a ordem divina: "frutificai e multiplicai-vos" ?
Essa perguntas parecem ser irrespondíveis, salvo se nos despreendermos do enfoque apriorístico que costumamos aplicar ao estudo do Gênesis.
Vamos, pois, colocar a questão de outra forma, enfocando-a sob outro prisma.Podemos começar nos perguntando: E se, na verdade, IHWH jamais tenha criado o homem só? E se jamais tenha pretendido que ele (o homem) ficasse só?
É preciso observar que Gênesis 2,18 não diz que o homem ERA só; diz que ele ESTAVA só.
O fato do homem estar só, não implica, necessariamente, que ele tenha estado sempre só, pois sua solidão poderia ser circunstancial, expressando uma condição de momento. Logo, poderia ter havido um tempo, anterior àquele, em que o homem não estava só.
RESPOSTA CHOCANTE
Se antes ele não estava só, haveria o homem de ter tido uma companheira.Mas que companheira seria essa, se a primeira mulher só foi criada depois, a partir da costela do homem, ou seja, osso de seus ossos e carne de sua carne?
A resposta é óbvia.A mulher (Eva) que IHWH criou, a partir da costela de Adão, não foi a primeira companheira do homem.Houve uma anterior a ela, e que foi, verdadeiramente, a primeira mulher.
Uma mulher criada antes de Eva ? Quem? Só pode ser aquela que foi criada junto com o homem, no dia sexto da Criação, conforme descrito em Gênesis I: "Macho e fêmea os criou".Essa mulher não era Eva. Era outra.
Por isso Adão, ao receber Eva, exclama: "Esta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne". Isso porque a primeira mulher que recebeu não era osso de seus ossos nem carne de sua carne. Não fora criada a partir dele, mas do mesmo modo que ele, do "pó da terra".
O relato de Gênesis I é coerente. Todos os "seres viventes" são criados aos pares (macho e fêmea), segundo sua espécie, até para que se lhes tornasse possivel frutificar e multiplicar-se. Por que com o ser humano haveria de ser diferente?
Assim, sendo homem e mulher criados juntos, infere-se que o homem teve uma companheira desde o dia em que nasceu.
Por que, então, em Gênesis II, ele aparece só, sem achar "uma companheira frente a ele"? (Gn II,20) Que teria acontecido com a primeira mulher, criada junto com homem, e que não era osso de seus ossos?
Teria morrido, deixando Adão viúvo e solitário?
A resposta é outra e mais chocante.
Adão ficou só porque sua mulher se foi. O casal se separou.
Em suma, o primeiro casamento da História terminou em divórcio.
LILITH
Tanto o mito da Criação quanto as demais narrativas fabulosas incluídas no Gênesis, guardam o traço inequívoco da rica tradição sumeriana, que se irradiou por todo o mundo mesopotâmico (com as devidas adaptações), enriquecendo as culturas que se desenvolveram naquela região, inclusive a babilônica, de onde deve ter sido absorvida pelos hebreus.
Portanto, é para a Suméria que devemos nos voltar, quando buscamos as origens da lenda de Lilith (aliás "Lilu", aliás "Ardat Lili", aliás "Lamaschtu"), um aspecto do culto à "Grande Deusa", cujas raízes nos remetem a um tempo remoto, de predominância matriarcal.
Em sua versão hebraica, Lilith se converteu na primeira mulher de Adão, criada junto com ele por IHWH, no sexto dia da Criação.
Roberto Sicuteri, autor da obra, "Lilith, a Lua Negra", é um dos que afirmam ter sido à época da transposição da Versão Jeovística da Bíblia para a versão Sacerdotal, que a lenda de Lilith foi expurgada do Gênesis, deixando uma lacuna que tornou contraditórios os capítulos I e II daquele livro. Ainda assim, sobraram alguns vestígios no texto canônico, a exemplo do que se lê no Livro de Isaias (Is 34:14).
Expulsa da Torah, a lenda de Lilith sobreviveu no Talmud, no Alfabeto de Ben Sira, e na Cabalah, ainda que mutilada por um progressivo processo de aviltamento da personagem. Na Idade Média, ela se integrou ao imaginário cristão, por força da popularidade de um texto hassídico, "Zohar - o livro do explendor" (século XIII), tida com uma das mais importantes obras do esoterismo cabalístico.
CONFLITO CONJUGAL
Diferente da pacata Eva (que haveria de substituí-la), Lilith era uma mulher voluntariosa e rebelde, que reinvidicava igualdade de direitos em relação ao homem.
Quando o casal copulava, ela contestava o fato de ficar sempre por baixo, suportando o peso do esposo. "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que devo ser dominada por ti, se também fui feita de pó e por isso sou tua igual"?
A essas questões, Adão respondia alegando haver uma "ordem" que não podia ser transgredida, segundo a qual o macho deve dominar a fêmea, para que se preserve o equilíbrio preestabelecido por Deus.
Indignada com o "machismo" do marido, Lilith decidiu abandoná-lo, retirando-se do Jardim do Éden e indo viver às margens do Mar Vermelho. Inconformado, Adão denunciou o comportamento da esposa ao Eterno, que destacou três anjos (Semangelaf, Sanvi e Sansanvi) para trazê-la de volta. Mas Lilith se recusou a voltar, sendo amaldiçoada pelos anjos: ela jamais teria filhos, pois todos os que concebesse morreriam logo após o parto.
O mito de Lilith, em sua versão hebraica, é vigoroso e fascinante, sendo razoavelmente possivel reconstituir as mutações progressivas que sofreu ao longo do tempo, e que terminaram por converter a primeira mulher criada por IHWH em uma figura diabólica (*).
RECONSTRUÍNDO O GÊNESIS
Com a inclusão da história de Lilith, desaparece a incoerência entre os capítulos I e II do Livro do Gênesis, viabilizando a seguinte leitura do mito da Criação:
1 - No sexto dia, IHWH cria o primeiro casal de humanos (Adão e Lilith): "macho e fêmea os criou".
2 - Lilith não aceita ser dominada pelo marido e o abandona, deixando o Éden.
3 - Inconformado, Adão queixa-se a IHWH, que manda três anjos no encalço de Lilith, com ordens para trazê-la de volta.
4 - Lilith nega-se a voltar e é amaldiçoada pelos anjos.
5 - Solitário, Adão vaga pelo Éden sem achar "uma companheira frente a ele".
6 - IHWH apieda-se de Adão e resolve dar-lhe outra esposa.
7 - Para garantir que a nova mulher (Eva) será submissa e dependente do homem, IHWH fá-la nascer de uma costela de Adão.
8 - Ao receber sua segunda companheira, Adão mostra-se aliviado: "Esta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne".
(*) Unido-se a um demônio (Samael), Lilith busca vingança contra Adão. Disfarçada de serpente, induz Eva a comer do "fruto proibido", provocando a ira de IHWH sobre o segundo casal. Na Europa Medieval, ela se converte em "súcubo", que além de assediar os homens durante o sono, vitima as mulheres grávidas, matando seus bebês no momento do parto. Para conjurá-la, escrevia-se nas paredes do quarto da gestante: "Adão e Eva, menos Lilith".
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Este texto deriva de uma palestra proferida pelo autor deste blog, em 2001, na Loja da Ordem Rosacruz AMORC, em Belém-PA. Está também publicado no sítio Kaderno