quarta-feira, 30 de abril de 2008

Gênesis ( I )









Durante um curso que eu estava ministrando, ocorreu-me promover, entre os alunos, uma pequena "enquete" sobre as origens do Homem.
O resultado me deixou estupefato.
A maioria esmagadora dos consultados manifestou-se pelo Criacionismo, sustentando que a espécie humana surgiu na Terra exatamente como está descrito no Livro do Gênesis, ou seja, por um gesto direto e instantâneo de IHWH (o áspero e implacável deus do Judaísmo, tornado padrasto dos cristãos). Detalhe: nenhum dos estudantes tinha idade superior a 30 anos.

Como é possivel que, em pleno século XXI, jovens de uma geração "independente", com amplo acesso à informação, admitam como realidade semelhante mito, é coisa que eu não ouso tentar explicar. Resta-me concluir que padres, pastores e rabinos estão sendo mais competentes (ou convincentes) que nós, professores.

Certamente, Gênesis é um livro fabuloso, sob todas as acepções que o termo comporta, mas sobretudo por ser um livro de fábulas, da primeira à última linha. Ele contem a resposta fantástica de um povo semita à questão que o Homem sempre se fez e ainda se faz: como foi que tudo começou? Questões como essa não podem ficar sem resposta. Se ela não existe, há de ser fabricada com a matéria-prima da Imaginação.

Por vezes, essa imaginação chega a extrapolar as fronteiras lógicas da questão proposta, como a de uma tribo do Amazonas, que além de conceber uma lenda para explicar o "começo de tudo", acrescentou outra para mostrar "o começo antes do começo".

Na concepção idealista de um povo campesino, que vive da agricultura e do pastoreio, o Paraíso Terrestre é um Jardim (ou, como alguns preferem, um Pomar), onde estão fincadas, entre outras, as árvores da Vida e do Conhecimento, ambas interditas ao usufruto humano (IHWH queria o Homem simples e ignorante). Por isso, quando a Criatura viola a interdição e prova o fruto do Conhecimento, adquirindo as noções de Bem e Mal, torna-se "como a divindade". Então, IHWH, preventivamente, a expulsa do Éden, antes que coma o fruto da Vida, e conquiste a imortalidade (Gn 3; 22).

Preventiva também é a atitude de confundir a língua dos construtores da Torre de Babel, que se haviam unido para edificar uma cidade. A tradição popular entende o episódio como um castigo divino a homens pretensiosos, que se dispunham, com a torre, a "tocar o céu". Na verdade, esse "tocar o céu" tem o mesmo sentido que hoje aplicamos a um edifício de muitos andares, chamado de "arranha céu" (Obviamente, ninguém admite que um edifício possa "arranhar o céu"). O que aqueles homens precisavam era de um prédio bem alto, capaz de orientar, visualmente, os que se afastassem, em demasia, do local das obras. Em suma, tudo quanto eles queriam era ficar juntos, porque haviam descoberto o enorme potencial da união, do trabalho coletivo, para o qual uma lingua comum era essencial. E foi isso que desencadeou a intervenção de IHWH: "Eis que o povo é um e fala a mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora não lhes será privado tudo quanto intentem fazer" (Gn 11;6). Então, confundiu a língua dos homens, para que não se entendessem e se dispersassem (Gn 11;7).

Fábulas como essa, a exemplo da que narra o Dilúvio Universal, têm o traço inequívoco da rica tradição sumeriana, e devem ter sido absorvidas pelos israelitas à época do Cativeiro Babilônico.

Genesis ( II )

Quando trata da criação do Ser Humano, Gênesis mostra IHWH agindo em dois momentos. E essa é a história que está na cabeça de todos. O Varão é criado primeiro; a fêmea, somente após concluído o processo geral da criação (6 dias). IHWH cria o homem à sua "imagem" e "semelhança", expressões que Moshê ben Maimon (Maimônides) associa a dois conceitos distintos: "Tôar" = imagem, forma material; e "Demut" = semelhança, forma espiritual (Note-se o quanto a contribuição intelectual dos rabis enriqueceu as fábulas do Gênesis, sofisticando-as e tornando-as base de uma complexa teologia).

"E formou o Eterno Deus ao homem, pó da terra, e soprou em suas narinas o alento da vida" (Gn 2;7).
Para vários povos antigos, a energia vital, que faz do homem um ser vivo, está associada ao ar que ele respira. Não é somente após inalar o ar, pela primeira vez, que o recém-nascido dá "sinal de vida"? Encontramos igual conceito na teologia egípcia de Akhenaton.

Algum tempo depois, entendendo que não era bom que o homem vivesse só, IHWH fê-lo cair num sono pesado, "...e tomou uma das suas costelas e fechou com carne o seu lugar" (Gn 2;21). Então, "...fez o Eterno Deus da costela que tinha tomado do homem, uma mulher, e a trouxe ao homem" (Gn 2;22). Há quem diga que a Torah não fala em "costela" mas em "lado" do homem. Contudo, não é assim que se lê na tradução do rabino Meir Melamed, lider espiritual da Comunidade Sefaradi de Miami. E não serei eu (que de hebraico sabe quase apenas que se escreve da direita para a esquerda) a colocar em dúvida a fidedignidade de sua tradução.

Por que tivera IHWH que tomar uma costela do homem, para criar a mulher, quando poderia tê-la formado do pó da Terra (adamah), como o fizera ao criar o homem? Há várias respostas possíveis para essa pergunta.

A mais óbvia é a que acentua o laço de dependência (ou subordinação) da mulher em relação ao homem, bem ao sabor ideológico da sociedade patriarcal que concebeu tal fábula. Mas há também outra explicação, mais rebuscada. Ao criar o mundo, IHWH criou, igualmente, as "leis" que o regem. Concluído o Processo de Criação (6 dias), tais leis não podiam mais ser violadas, nem mesmo pelo Criador. E segundo elas, a vida brota da vida, um ser é gerado por outro ser, de sua espécie. O ser humano não pode mais nascer da terra, mas apenas de outro ser humano. Por isso, a primeira mulher é formada a partir do primeiro homem (Na mitologia grega, até os deuses eram subordinados a certas "leis universais")

Se essa história da criação dos seres humanos em dois momentos distintos é a mais conhecida e repassada, certamente não é a única contida no Gênesis. Quem lê o livro com atenção, percebe que ele abriga duas narrativas diferentes, gerando uma contradição entre os capítulos 1 e 2. Estudiosos da Bíblia encontram nesse detalhe a presença de duas fontes distintas, acomodadas no mesmo texto. Mas há uma outra explicação, segundo a qual os dois capítulos se tornaram contraditórios, por supressão de uma parte da fábula. Sim, porque do mesmo modo como fatos reais são deturpados e se convertem em lendas, as próprias lendas podem também ser vítimas de mutilações. É o que parece ter acontecido nesse caso.

Para conhecer melhor essa hipótese, sugiro a leitura de A Primeira Mulher de Adão.

Abraão, Isaac e Jacob são personagens emblemáticos de uma saga de sonhos imigrantes e promessas divinas, que serve de inspiradora abertura para a história subseqüente da nação de Israel, concebida num tempo em que o monoteísmo (melhor talvez seja falar em monolatrismo) já se havia tornado o traço distinto de sua cultura nacional.

Gênesis termina com a lenda de José, intróito necessário ao segundo, mais importante, mais apoteótico e não menos fabuloso livro do "Pentateuco": o Êxodo.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Coisa de índio



Penso que eu poderia ir viver com os animais
que são tão plácidos e bastam-se a si mesmos.
Fico a contemplá-los durante longo tempo.
Eles não suam nem se queixam de sua condição.
Não ficam despertos no escuro nem choram seus pecados.
Não me repugnam discutindo seus deveres para com Deus.
Nenhum deles se mostra insatisfeito.
Nenhum deles se deixa enlouquecer
pela mania de possuir coisas.
Nenhum se ajoelha diante do outro,
nem diante dos da sua espécie
que viveram há milhares de anos.
Nenhum é respeitável ou infeliz
sobre a face da Terra.
- Walt Whitman