quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Carpe diem, Baudelaire



Descobri Charles Baudelaire numa edição resumida de As Flores do Mal, nas antigas e saudosas Edições de Ouro, da Tecnoprint Gráfica. Como se tratava de uma seleção, os editores a intitularam, muito apropriadamente, "Flores das Flores do Mal".

Tradução esmerada do "príncipe dos poetas", Guilherme de Almeida. Aliás, fiquei tão viciado nessa tradução, que jamais consegui gostar de outra. (Dá-se também com o Corvo, de Poe. Para mim, só Milton Amado, cuja tradução deixa "no chinelo" Fernando Pessoa, Machado de Assis e outros monstros sagrados).

Comparando com outras traduções, fica-me a certeza que Guilherme, melhor que os demais, conseguiu haurir o sumo, a seiva, o estro da poética sepulcral de Baudelaire. E a dedicatória que faz "à Lingua Portuguesa" , na apresentação da edição, é algo simplesmente inesquecível e que assim se encerra:

"À minha senhora e escrava,
senhora que amo e escrava que castigo,
à doce e rude Língua Portuguesa dedico
estas doentias flores alheias
que tentei fazer suas"...

"Doentias flores alheias" ... sim, doentias são as flores de Baudelaire ... flores do mal ... plantas carnívoras ... Sua poesia não quer encantar, quer chocar, machucar, ferir... Suas imagens são ácidas, cruas, cortantes, e mesmo quando fala da Beleza ele o faz como um carrasco que espera o condenado, empunhando a lâmina afiada.

Baudelaire namora a morte; sua poesia, não raro, rescende a cemitério, e ele faz amor dentro de um jazigo.

"O namorado arfante, enleando sua bela,
parece um moribundo acariciando a tumba".

"Hino à Beleza" é, para mim, a melhor flor de suas Flores do Mal.

"Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,
Beleza, monstro horrendo e ingênuo,
se de ti vem o olhar, o sorriso,
os pés que abrem a porta de um infinito
que eu amo e jamais conheci?"

Diante da Beleza "monstruosa" que Baudelaire proclama, até o Destino se curva:

"Sobes do abismo negro ou despencas de um astro?
O destino, servil, te segue como um cão,
semeias a desgraça e o prazer em teu rastro,
governas tudo e vais sem dar satisfação"

Para Baudelaire, não importa se essa beleza vem de Deus ou de Satã, não importa se é um anjo ou uma sereia, desde que seja capaz de tornar "a vida menos feia e os instantes mais breves".

Todos os poemas dessa edição parecem ter o propósito de advertir, seja essa advertência explícita ou velada: Não se contenham, não reprimam os anseios do coração. Porque a vida é curta, a morte é certa...

Leio Baudelaire e me recordo do aviso do Harpista egípcio que, milhares de anos atrás, recomendava ao seu senhor que alegrasse seu coração, que perfumasse o corpo com as essências mais caras, que untasse os cabelos com os óleos mais finos, que satisfizesse todos os seus desejos ... antes que chegasse "o dia da lamentação".

Fica aqui, pois, meus amigos, o recado e a advertência de Baudelaire: Carpe Diem enquanto lhes é possivel fazê-lo. Para que se não lhes abata, amanhã, um remorso póstumo:

"- E o verme te roerá como um remorso atroz."

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Alvaro Rodrigues (2009)

sábado, 31 de outubro de 2009

Tempestade amazônica



Para o Norte eu cavalguei
no mais ásperos dos ventos
Observei rios, estradas e florestas.
Estive onde anjo algum ousou pousar.

Encontrei o trono
da privação,
do carecer,
do querer sem ter.

Temor e frio se ergueram
com suas asas de espinhos de veludo.
As ordas das trevas vibraram,
ressoando o canto dolente
de um pássaro moribundo,
espalhando cinzas de música
na tempestade amazônica
que eu respiro e devoro,
sempre clamando,
sempre rasgando
sempre caindo ...


(agosto/2009)

sábado, 14 de março de 2009

Cansaço



É preciso amar a vida e vivê-la plenamente hoje, como se não houvesse amanhã.

Mas há dias em que a vida semelha um fardo, que carregamos às costas, arrastando-o pela estrada longa e pedregosa que leva a lugar nenhum. É, então, que somos tomados pelo cansaço, um enorme e profundo cansaço, que se instala e avassala os recônditos da alma.

Andamos em círculos. De onde parece germinar a luz nova de um farol, acabamos por descobrir a velha e abusada candeia, com seu brilho mortiço e vulgar.

O dia se abre no enfrentar dos problemas de sempre, todos miseravelmente iguais. Resolvê-los não nos gratifica, apenas garante que amanhã estaremos na trincheira, outra vez, para voltar a enfrentá-los.

Uma das desvantagens de acumular muitos anos é a perda inexorável de qualquer tipo de inocência. Cada vez se torna mais dificil gozar a volúpia da descoberta de algo realmente novo, diferente, desconhecido. Tudo vai tomando um gosto de usado, de repetido e, não raro, de medíocre.

Lidar com o que é pequeno e vulgar nos torna mais cansados e desalentados. Aturamos os que chafurdam na vaidade comesinha, dispostos a descer aos porões da indignidade, em troca de minúsculas posições de prestígio e poder, enquanto nossos olhos, quase em desespero, buscam o longe, a miragem, o fascínio dos grandes desertos.

Ao cabo de dias como esses, felizes os que, ao menos, dispõem de um colo macio onde repousar a cabeça cansada e deprimida.

- Alvaro Rodrigues (agosto de 2008)
  

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Adeus, Max



O Pará, o Brasil, a Poesia, perderam Max Martins, que deixou este mundo e partiu para outras paragens, no final da tarde de uma segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009.

Max nasceu em Belém do Pará em 1926. Exerceu vários cargos públicos até o momento de sua aposentadoria, a qual o Inamps incorporou outra: a de escritor, no primeiro caso de alguém que recebe benefícios de aposentadoria por ter exercido, por mais de trinta anos, a poesia.

Lançou seu primeiro livro, "O Estranho", em 1952 (edição do autor), que refletia (segundo o que dele escreveram alguns críticos) a percepção, mesmo que tardia, do modernismo, principalmente da musicalidade de Cecília Meireles e do coloquialismo estilizado de Carlos Drummond de Andrade e Mário Faustino.

A influência de Faustino é ainda mais nítida em "Anti-retrato" (1960), sobretudo na forma de construção da poesia.

"Já é tudo pedra,
os dias, os desenganos.
Rios secaram neste rosto, casca
de barro, areia causticante".

Esse apereiçoamento do projeto de escrita demoraria uma década para voltar a se expressar, com "H'Era" (1971), onde, ao lado da exercida por poetas nacionais, nota-se a influência de escritores estrangeiros, como Dylan Thomas, William Alden e Henry Miller:

"Palavras famintas pedem bis, e o X
de Hamlet e Henry Miller me visava;
velhas rezavam, se revezavam
em cantos, panos, palinódias".

Em "O Risco Subscrito" (1976), seus poemas  ganham um tom mais universalizante e a preocupação com a linguagem se torna o próprio assunto do poema, estabelecendo uma nova relação formal com o espaço em branco da página, no que (meu ex-professor universitário) Benedito Nunes, na apresentação da obra, chama de "ensaio de espacialismo":

"o olho
do ovo

o ovo
do olho".

Em "Caminho de Marahu" (1983), Max percorre a trilha dos temas eróticos, que ele transforma em objeto de investigação e crítica, associando a natureza da pesquisa de linguagem à natureza do desejo sexual:

"O branco apaga tudo - as cores deste gozo
E o próprio gozo,
neste poço,
cala
o som da água".

Em 1993, Max Martins foi agraciado com o prêmio de poesia Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra ("Não para Consolar"), cuja  maioria foi traduzida para o alemão, inglês e o francês.

Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente à época que ministrei um curso sobre "Dinâmica da Comunicação", na fundação cultural "Casa da Linguagem", que ele fundou e dirigiu entre 1990 e 1994. Além do grande poeta que todos reconheciam, não demorei a me dar conta de estar lidando com alguém de imensa sensibilidade diante da vida e de uma extrema generosidade afetiva. Ou seja, alguém que sentimos prazer em conhecer.


Obras de Max Martins

O Estranho (1952)
Anti-Retrato (1960)
H'Era (1971)
O Ovo Filosófico (1976)
O Risco Subscrito (1980)
A Fala entre Parêntesis (com Age de Carvalho, à moda da renga, 1982)
Caminho de Marahu (1983)
60/35 (1985)
Poema-cartaz Casa da Linguagem (1991)
3 Poemas - folder com desenho, colagem (1991)
Marahu Poemas (1985)
Para ter onde Ir (1992)
Não para Consolar - poesia completa (1992)